Zylberstajn: o FGTS pode financiar a aposentadoria complementar 


Aos 73 anos, o professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) é um dos maiores especialistas em economia do trabalho. Ele defende uma Previdência menos ambiciosa e mais abrangente, até para os militares
Zylberstajn é um dos responsáveis pela elaboração de um projeto de Reforma da Previdência, patrocinado pelas associações de classe ligadas ao setor de seguros e previdência privada. Nesta entrevista à DINHEIRO, ele detalhou os principais pontos da proposta e defendeu um sistema mais abrangente e menos ambicioso, que atenda todos os trabalhadores. Confira:

DINHEIRO – A reforma da Previdência vem ocupando as manchetes e há várias propostas em análise. O que é necessário fazer?
HÉLIO ZYLBERSTAJN – Não se discute mais se a reforma precisa ou não ser feita. A discussão agora é como fazer. Nossa proposta vai ao encontro do consenso dos organismos internacionais, que sugerem que os sistemas previdenciários tenham vários pilares. Não podemos continuar com o modelo que se pratica no Brasil. Aqui, a Previdência se baseia apenas no pilar da repartição, em que a geração que está empregada paga os benefícios dos aposentados, e espera que as gerações futuras façam o mesmo. Também não é possível reproduzir o que o Chile fez há quase 40 anos, que é basear o sistema apenas no pilar da capitalização.

DINHEIRO – Qual a proposta da Fipe?
ZYLBERSTAJN – Nossa proposta tem três vetores. Um é social, a reposição integral da renda na base da pirâmide. O segundo é a redução dos encargos sobre a folha. E o terceiro é a formação da poupança de longo prazo. Para isso, o sistema que propomos se apóia em quatro pilares.

DINHEIRO – Quais?
ZYLBERSTAJN – O primeiro pilar é o que chamamos de renda básica do idoso. Será um benefício financiado pelo Tesouro. Será universal, não-contributivo e no valor fixo de R$ 550. Para obter, basta apresentar a certidão de nascimento ao completar 65 anos. Traz a certidão, leva o benefício, seja bilionário, seja morador de rua. Provavelmente, um bilionário nem vai buscar esse dinheiro, mas ele teria direito. E não haverá condições de renda. Isso vai evitar fraudes, favores, o surgimento de despachantes, alguém comendo na mão de alguém.

DINHEIRO – E o segundo pilar?
ZYLBERSTAJN – O segundo pilar é o atual INSS, com duas mudanças muito importantes: o sistema será achatado e alargado. Achatado porque hoje a Previdência brasileira é ambiciosa demais. O teto dos benefícios é R$ 5.600, e isso são 2,5 vezes a renda média do trabalho no Brasil. Nenhum país se propõe a pagar benefícios tão elevados. O sistema público tem de ser básico. Assim, o teto tem de ser próximo da renda média do brasileiro, que é de R$ 2.200 por mês. Se colocarmos esse valor como teto, vamos atender 75% dos trabalhadores.

DINHEIRO – Como vai funcionar?
ZYLBERSTAJN – O benefício a ser pago pelo que hoje corresponde ao INSS será uma segunda faixa de contribuição, limitada a R$ 1.650 por mês. Só vai receber esse valor quem tiver contribuído considerando um salário de R$ 2.200, que é a renda média. Esse benefício máximo de R$ 1.650 vai se somar aos R$ 550 do primeiro pilar. Com isso, chegamos ao teto de R$ 2.200. E aqui está a diferença de tudo o que se está propondo. Quem tem uma renda abaixo da média brasileira terá uma reposição de 100% na aposentadoria.
“O sistema público deve ser básico e o teto tem de ser próximo da renda média do brasileiro” – Posto de atendimento ao trabalhador, em São Paulo: proposta da Fipe é desvincular o seguro-desemprego do PIS.

DINHEIRO – Por que o sistema será alargado?
ZYLBERSTAJN – O conceito ganhará força se ficar claro que as regras valem para todos. Quem nasceu a partir de 2005 estará no sistema, não importa em que ocupação vai trabalhar. Haverá uma idade mínima de 65 anos de idade e um período mínimo de 40 anos de contribuição para começar a receber o benefício. Só existe uma exceção, aplicada às mulheres que tiverem mais de um filho. Elas terão de contribuir por menos tempo, um mínimo de 35 anos. É uma maneira de compensar a mulher pelo trabalho social, não-remunerado, de criar os filhos. Com isso, acaba a diferenciação de regimes. Vai incluir funcionário público, militar, todo mundo. Acaba a diferenciação de regime. Mas vamos falar dos militares depois. Antes disso você chama uns guarda-costas para podermos continuar a entrevista (risos).

DINHEIRO – Os militares pesam muito nas contas da Previdência?
ZYLBERSTAJN – No governo federal nem tanto. O problema são os estados. O topo da carreira na Polícia Militar é o posto de coronel. Em São Paulo há 48 coronéis da PM na ativa e dois mil aposentados. E eles se aposentam ao redor de 50 anos. Antes disso, o militar não é aposentado. Ele é reformado, vai para reserva e fica à disposição no caso de o Brasil entrar em guerra com a Argentina. A reserva é um período de inatividade, é uma pré-aposentadoria. Ele continua recebendo e pode até ser promovido, mesmo depois de aposentado. É claro que os militares têm uma carreira diferenciada. Precisam ter disponibilidade total, mobilidade geográfica grande, e isso tem um custo pessoal e familiar elevado. Temos de levar isso em conta. Mas aqui há um problema adicional. A legislação que regulamenta isso é toda baseada em decretos. Não são leis, não passam pelo Legislativo. Então fica difícil negociar.

DINHEIRO – Com a dificuldade adicional de argumentar com quem tem uma arma no coldre ou está dirigindo um tanque, não?
ZYLBERSTAJN – Mesmo assim, os militares sabem que nem todos os oficiais chegam ao posto de general. Qual é nossa proposta? Continua a haver o período de reforma. A diferença é que, durante essa pré-aposentadoria, o militar terá de continuar trabalhando no setor público, dependendo de sua qualificação. Medicina, engenharia, gestão, o que for. Quem se aposentar aos 60 anos terá de continuar trabalhando. Isso reforça o funcionalismo público, especialmente agora, quando as pessoas estão vivendo mais tempo.

DINHEIRO – Falta falar de mais dois pilares.
ZYLBERSTAJN – O terceiro pilar é a grande novidade: a capitalização. Mas aí temos de abrir um parênteses. É difícil tirar recursos do orçamento do INSS para formar uma estrutura de capitalização. Por isso, nossa proposta é aproveitar algo que já existe, o FGTS. Aqui está a maior mudança estrutural. O FGTS vai financiar duas coisas, a aposentadoria complementar e o seguro-desemprego. Hoje, o seguro-desemprego é financiado por recursos do PIS. Essa é uma das maiores jabuticabas do País.

DINHEIRO – Por quê?
ZYLBERSTAJN – O seguro-desemprego funciona como uma apólice de seguro. O sinistro dessa apólice, que aciona o pagamento da indenização, é a demissão do trabalhador. Portanto, é evidente que o seguro-desemprego tenha de ser ligado à folha de pagamento. Só que o PIS é um imposto que incide sobre o total do faturamento. Veja o problema: uma empresa com faturamento elevado e que não seja intensiva em mão de obra terá uma rotatividade menor do que outra que empregar muita gente e demitir e contratar mais pessoas. A primeira empresa vai pagar, proporcionalmente, mais imposto do que a segunda.

DINHEIRO – Como resolver isso?
ZYLBERSTAJN – O seguro-desemprego dos novos trabalhadores virá do FGTS. Cada um deles terá de acumular três salários. Mantida a estrutura atual, essa acumulação deve ocorrer em três anos. Os três salários acumulados vão continuar sendo depositados na Caixa. A grande sacada disso é que se passa para a capitalização sem tirar um dinheiro que hoje vai para o INSS. E há duas mudanças importantes. A primeira é que funcionários públicos e militares terão FGTS. A segunda é que quem nasceu a partir de 2005 terá uma conta ligada ao CPF, e não ao PIS. Vale para autônomo, servidor público e trabalhador pela CLT. A pessoa mudou de regime? Era empregado e virou empreendedor, voltou a ser empregado e foi aprovado em um concurso público? Sem problemas. Tudo fica vinculado ao CPF.
“Em São Paulo há 48 coronéis da PM na ativa e dois mil aposentados.” – Tropas da Polícia Militar de São Paulo, em cerimônia de entrega de viaturas: peso na aposentadoria.

DINHEIRO – E depois de três anos?
ZYLBERSTAJN – Depois que acumular os três salários, o trabalhador fica livre para investir o excedente em planos de capitalização privada, que estarão disponíveis no mercado. Esses planos terão regras rígidas e serão uma espécie de commodity. São poucas as pessoas que entendem do mercado financeiro. Então, a diferenciação será pelo rendimento e pela taxa de administração. Quem tiver rendimento bom e cobrar taxa baixa terá mais clientes. Além disso, não será possível sacar antes da aposentadoria. E, depois, o beneficiário não recebe o dinheiro de uma vez, mas passa a ter direito a uma renda vitalícia. Esse é um ponto importante: não fica para ninguém. Morreu, acabou. Quem quiser proporcionar uma renda para o cônjuge e para os descendentes terá de investir um dinheiro a mais para comprar um seguro de vida ou uma garantia de rendimento. Com isso você consegue construir um mercado regulamentado e fomenta a criação de poupança privada de longo prazo.

DINHEIRO – E o que muda no PIS?
ZYLBERSTAJN – Nossa proposta é ousada: mudar todas as regras do PIS. Desde 1988, 40% do PIS vai para formar o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que vai para o BNDES. Em 2017, o PIS arrecadou R$ 60 bilhões. Ora, 40% disso são R$ 24 bilhões, o que é mais de 10% do déficit da Previdência. Se o País voltar a crescer, chega a R$ 30 bilhões. Podemos também usar os recursos do pré-sal, como faz a Noruega. Quanto mais desses fundos forem para o INSS, mais rápi se resolve esse desequilíbrio.

DINHEIRO – Faltou falar da contribuição. Como financiar tudo isso?
ZYLBERSTAJN – Como funciona hoje? A contribuição do empregado vai de 8% a 11% do salário, até o teto de R$ 5.600. A empresa contribui com 20% sobre a folha. No caso dos bancos, 22%. A contribuição na alíquota mais alta é 31%. É muito. Na frente, no novo sistema, calculamos que será preciso 5% do empregador e 5% do empregado, até o teto de contribuição de R$ 2.200. O trabalhador autônomo vai contribuir com 10%, o que não é um absurdo. Reduz a carga sobre o salário. Estamos sugerindo também alíquotas equalizadoras, para equalizar as contribuições do sistema novo, que são de 10%, com as do antigo, que é de 31%.

DINHEIRO – Haverá um período de ajuste?
ZYLBERSTAJN – Sim. Funciona assim: nasci em 2005, estou em 2023, vou entrar no mercado de trabalho. Eu contribuo com 11% e a empresa com 20%. Os mesmos 31%. A contribuição é igual, mas ela não entra no cálculo das contribuições para o novo sistema. Tem uma diferença de seis pontos percentuais para o trabalhador e de 15 pontos percentuais para a empresa. O trabalhador terá um benefício máximo de R$ 1.950.

DINHEIRO – Isso é uma desvantagem para o trabalhador. Como vender essa ideia?
ZYLBERSTAJN – É uma desvantagem sim. O trabalhador que chega vai pagar parte do benefício de quem está se aposentando. Qual o argumento? Se houver reforma, ele vai pagar 11% e receber R$ 1.950. Se não houver reforma, ele vai pagar os mesmos 11%, mas pode simplesmente ficar sem receber aposentadoria lá na frente, pois o dinheiro vai acabar. Achamos que esse é um bom argumento.

Fonte: Isto É Dinheiro